Pedi o cardápio mais por hábito do que por fome.
Já conhecia os itens à disposição nesse estabelecimento de outrora; os cheiros, os gestos repetidos do garçom com a flanela úmida, os ecos secos dos passos dos que nele adentraram, aqueles que inda hoje entram e ficam sem saber por quê. A Rua do Ouvidor é dessas que fingem mudança, mas só vestem outra casaca sobre o mesmo antigo corpo.
Olhei a disposição das mesas na área exterior; aqui, nesse exato canto, ao lado dessa parede azulejada, onde o sol da manhã ainda hesita em entrar, onde poucos podem me ver. Não sou desses que se fazem gratuitamente notar. Aqui mesmo, na cafeteria “Vozes do Ouvidor” — uma homenagem simpática só aos vivos —, deixei que a vista se afundasse no movimento lento das velhas vitrines, sorrindo com os olhos do passado. “Néctar do oriente”, li no menu. Café fino, coado em tempo, acompanhado à fresca dose de água com gás. Ao lado, a instrução: “Aprecie com palavras mudas”. Ri por dentro. A metáfora, tão singela, tão banal, me acertou como um tapa dado com carinho.
Era isso que me faltava: aquecer as palavras mudas. Fazer escorrer aquilo que me pesa a garganta desde os anos do destacamento, quando usava o coturno com o brilho fingido da legalidade e metia os dedos em papéis que jamais deveriam ter sido lidos.
Pedi a bebida. E uma caneta. Tirei da bolsa uma folha surrada, com anotações sobre as quais não mais me recordava.
Por oportuno, ora escrevo aqui, em cacos e frases curtas, como quem cava um poço sabendo que no fundo há veneno. “Descrever-se é expor-se ao ridículo da memória. Mas há um prazer nisso, confesso. Um prazer clandestino, como furtar maçãs de um altar. Fui policial.
Destacamento de investigações gerais. Rua do Ouvidor, quarteirão central, onde se diziam verdades com vozes de poeta e mentiras com timbre de estadista.
Ao lado da cafeteria, sobrevive a Livraria República, nome pertinente à época dos fatos que me proponho a narrar, lugar de paredes que escondem mais do que exibem.
E foi bem ali que o caso começou. Tempos efervescentes. Na transição do Império à República desse país, rumores circulavam sobre um manuscrito raro, guardado por homens ditos influentes.
Um livro de linguagem cifrada que continha um segredo então desconhecido— um verbo, diziam, absoluto, capaz de moldar consciências e dar plenos poderes ao fiel intérprete, competente e com sorte de encontrá-lo.
A notícia, tal qual as coisas desse mundo em geral, não me viera ao nada. Só o tempo é capaz de aprimorar o sujeito eivado de imaturidades.
O acaso não existe. Aliás, acaso é a negação da causa. Hoje, digo-lhe com certa margem de convicção: pra cada efeito, uma respectiva causa. Causas e concausas.
Pois bem. Àquela época, um colega de destacamento, monarquista convicto, disse-me ter tido notícia de um livro por meio de burburinhos velados entre alguns criminosos da cidade, por ele detidos para averiguação. Não sei dizer nomes.
O fato é que ele, jovem, curioso como a baixa idade, desejoso de mostrar serviço, haja vista os rumores de um golpe de estado, ou talvez para conquistar vaga em promoção, por meio de tortura, descobriu uma pista sobre o livro tal.
Em posse desses informes, dirigiu-se à livraria, esta mesma que ora lhe aponto ao meu lado, a mais bem frequentada da cidade, a única, sem sombra de dúvidas, apta a abrigar um objeto de tal quilate.
Soube que no dia e mencionado local, ele questionara o livreiro, herdeiro de um finado veterano da Guerra do Paraguai: - Sois um filho da viúva?" – ao que outro respondeu: "Meus irmãos como tal me reconhecem." No relato, meu estranhamento.
Que diabo de pergunta. Nada mais me informou. Supus uma espécie de segredo, seguido de um provável arrependimento em ter-me dito. Talvez esse fosse o motivo. Uma lacuna. E o tal livro? Fingi desinteresse. Na noite seguinte, fui eu mesmo. As exigências eram poucas.
Não havia poder judiciário que me opusesse restrições. Havia sim, o poder de Pedro. Só. Nenhum regulamento, nenhuma fiscalização que me impedisse o ato, muito menos os famigerados mandados.
Ao menos não como hoje. Direitos? Só para inglês ver. À farda, noticiei ao vendedor uma inspeção por suposto crime de lesa-majestade, o mesmo que conversara com o meu colega, acredito.
Não sabia ao certo o que buscava, a não ser um vago conhecimento sobre um livro obscuro, a muitos poucos interessados. Vasculhei tudo, mas nada. Dias depois, esquecido o assunto, vi meu colega guardar algo com cautela em seu armário. Esperei que saísse.
A portinhola estava aberta. Vasculhei. Era ele — o livro. Capa de couro negra. Sem título aparente. Repleto de frases em latim vulgar, símbolos, cifras, esquemas. Copiei trechos na escassez do tempo. Com o cuidado de um curioso errante, comecei a estudá-lo em segredo, sem que o outro disso soubesse.
Comprei dicionários de símbolos, gramáticas de línguas mortas, manuais de interpretação, tudo o que me não me era habituado. Nunca fui um homem de letras. A mim, bastava-me o cargo, os ordenados e um pouco de ambição que os majorasse, ou, em último caso, que ao menos os mantivesse.
Nas horas vagas, passei a frequentar essa cafeteria para estudar. Usava me assentar sobre essa mesma mesa, onde, com o esforço de quem ignora a amplitude dos fenômenos, aprendi, e quanto mais lia, mais compreendia: aquilo não era apenas linguagem — era comando. Inventei um plantão. Meu colega saiu. Mandei-o para averiguação em bairro afastado, por suposta denúncia de briga em um bar, o que, de fato, não era incomum. Meias verdades.
Os tempos borbulhavam entre e o medo e a insatisfação, e os cariocas, com frequência, buscavam vestir-se aos hábitos etílicos como nunca dantes em nossa história, a ver pelos anais que a remontam. Saiu. Acedi novamente ao livro e dele transcrevi trechos que julguei fundamentais, posto que, na chefia, detinha a chave mestra para cada buraco que se trancasse naquele destacamento. Lia, anotava, guardava o manuscrito para interpretação, quando só e possível.
Dias depois, uma reviravolta: o posto fora invadido por homens da quadrilha de Gatto, um nome temido na região, criminoso sem rosto, que agia com inteligência e teatralidade. Levaram tudo.
Inclusive o livro.
Tal foi a minha insatisfação quando o soube. Não sei dizer se pela ousadia do ato ou se pela res furtiva. A cabeça girava, na busca de se processar uma solução interceptada pela frustração. Deixaram uma página destacada sobre a mesa, página de número três. Mostrei-a ao meu colega, em cuja ocasião negou-me conhecer.
Algo não se encaixava. Por noites adentro, de certa forma já iniciado na arte da interpretação, busquei por livros de perícia dactiloscópica, a partir do que tudo o mais me chamava ao desinteresse. Examinei o papel. Cruzei com os arquivos da corporação. Não tive dúvidas.
Uma nova era se iniciava, e nela era o meu dever me embrenhar. O positivismo: a aurora das ciências, o marco das luzes contra toda a escuridão. Não tive dúvidas, as digitais eram dele: Tobias Ramos de Alencar. Não hesitei. Amizade e coleguismo são coisas que não se misturam. Primeiro, o dever. Ordenei sua prisão.
No interrogatório, mal falou. Disse que não sabia traduzir. Leu a página, pensativo. Apontava palavras com o dedo, levava-o aos lábios. Tremendo, bebia a água que lhe dispus ao copo sobre a mesa.
Disse-me que contaria os antecedentes do achamento, em confissão, mas que não dominava o conteúdo, tampouco a motivação da escritura. Falou sobre a denúncia, que com ardil logrou a apreensão do livro.
Que, porém, não a formalizou, apenas o guardou em seu armário, e ali, por ignorância, o deixou. “- Não tenho letras o suficiente para compreendê-lo”. Sem poder forçá-lo, dei-me por satisfeito. Voltou à cela e dormiu.
Na manhã seguinte, encontraram-no morto. Segundo o legista, no laudo oficial, a causa mortis: asfixia por envenenamento com extrato de acácia rubra, vulgarmente conhecida como “A Língua de Hiram. Silenciosa, ritualística, letal.
Símbolo da maçonaria. A planta do silêncio. Conhecida a causa da morte, ignorado o caso, inda hoje sem solução. A imprensa especulava, mas nada mais havia sido possível ser provado. Ciência incipiente.
O destacamento, revirado, jamais recuperou sua ordem. Exceto o vulto dos fantasmas, nas palavras soltas de quem especulava...o livro… nunca mais foi encontrado. Tempos passados. A República foi proclamada. Marechal Deodoro assumiu com a pressa dos que sabem que a história é mais distraída do que justa.
Fui promovido. Não havia mais escravos, nem jacobinos. Uma revolta ou outra, a cargo dos monarquistas, nada porém, com o que me preocupar. A história, como sempre, seguiria o seu devido rumo. Com a federação, o poder fora distribuído entre estados e municípios. Com pouco esforço, tornei-me coronel.
Não do exército, do qual me aposentei. Coronel, chefe de província, com poder de mando e desmando, muito mais que mereci. Mas nunca esqueci Tobias. Nem a página. Nem o livro. Prudente que me pare por aqui. Antes, porém, ao leitor sedento, a razão que me refresque a memória. Não poderia ir embora, deixando-o perdido em reviravoltas.
À posteridade que me sucederá, a emblemática frase exposta à página três, fraquejada por Tobias em me explicar. “Se vogliamo che tutto rimanga com'è, bisogna che tutto cambi.”
(Se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude).
Ah, o livro? Deve de estar por aí, em algum lugar. Sob a posse de uns poucos, de alguém, ou comigo, ou em mim. Jamais destruído. Depende de quem lê. Don Vasconcelos Gatto – Rio de Janeiro.